Gabrielle Guido
Coluna Lambfoto
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4 min readJul 5, 2022

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A história não revelada

Em novembro do ano passado estava me preparando para uma residência e tinha meses que tentava começar a fotografar com filme. Para além do hype (que não tenho nada contra), estava focada em tentar reduzir meus cliques, o ritmo e respirar mais ao tomar as decisões sobre imagens. E convenhamos, nada melhor do que apenas 36 poses e a impossibilidade de saber se fiz "certo" naquele exato momento.

Posterguei muito esse processo pelo simples fato de ter idealizado a compra de uma câmera perfeita: manual, lente com uma alta nitidez, etc. Depois de perceber que esse desejo torto pouco me ajudava de fato, peguei uma saboneteira de alta qualidade nos anos 90 que tinha aqui de casa. Comprei pilhas (pasmem, algo que não carrega via USB), separei os filmes que ganhei de presente e fui fazer um primeiro teste.

Por sorte cliquei em um botão. Ouvi um barulho. Quando parou, eu abri a tampa e lá estava um kodak iso 400 velhinho, era o filme rebobinando. Ele estava mesma posição há mais ou menos 14 anos. Perguntei para meu pai o que tinha acontecido: "acho que foi o ano que compramos uma digital".

Guardei. Fui para o Pará, voltei, andei por Salvador, de Itapuã ao Centro com a câmera na bolsa pensando 3x antes de clicar para saber se era a luz que queria. Quando os novos filmes acabaram, juntei com o velho e mandei revelar.

Poderia passar extensos minutos falando de cada rio ou beco que entrei, mas o que quero mesmo é dizer que viajei numa capsula do tempo.

Mãe, estrada e curva, em um ano indefinido, meio do caminho para o Tocantins.

Há tempos que não via todo mundo dessa casa (parece que somos muitos, mas são só 4 pessoas) em frente a uma tela. Tinha um riso, uma lembrança de quem não está mais em carne e osso aqui na terra e corpos totalmente diferentes do que somos hoje.

Estávamos todos olhando uma imagem de estrada tremida. Foi a tentativa de guardar as cores do céu que ninguém viu igual. "Isso aí foi onde?", "Hoje nessa estrada só tem plantação de soja." Olha o filho de fulano, está enorme hoje… "

Um entre lugar, o caminho entre o ponto de partida e a chegada.

Nenhum de nós sabia o ano exato dessa viagem. O chute é que tenha sido uma das primeiras vezes que fomos de carro de Salvador para Araguaína. 1829 km de caminho, numa época que não tínhamos noção que poderíamos economizar 100km entrando ali pelo Maranhão. Cruzamos a Bahia de leste a oeste, entre pausas, comidas, tempestades e calor.

As 36 poses têm estrada, têm a cara do final dos anos 90 e início dos 2000. Mas, o engraçado mesmo é não saber quem tirou qual foto. Foi uma disputa pela autoria, afinal era uma câmera para 4 pessoas (às vezes para 10) em uma barragem tomando refrigerante e brincando no rio. Foi um jogo de adivinha que partia da lógica de eliminação de quem não estava no retrato.

Essa acho que fui eu. Araguanã, em tempos de acampamento.

Mesmo olhando para esses filmes digitalizados não há certeza dos acontecimentos, cada um lembra um trecho. Parece um tempo inventado. De um momento que talvez se perdesse para sempre, que sabe-se lá quando se tornaria presente de novo tudo isso porque "foi o ano que compramos a digital".

Para além da nostalgia compartilhada dos millenials, tem a certeza de que faz sentido fotografar para lembrar. Lembrar sem compromisso com uma dita verdade e sim com o ato de estar junto tentando montar o quebra-cabeça da imaginação e da memória.

Será que brincava de ser fotografa desde cedo? Pai, irmão e mãe. Balsa entre Maranhão e Tocantins.

Faz sentido porque senti no corpo inteiro o presente de ter essas imagens.

A hora de ouro e a espera da travessia. Balsa entre Maranhão e Tocantins.

Susan Sontag fala que fotografar é atribuir importância, e agora senti isso com profundidade. Daqui 20 anos, como será que me esbarrarei nas fotos de hoje? serão as lembranças das nuvens? um celular perdido? Ou HD que não acesso há tempos?

Não sei, mas agora quero deixar pistas para o futuro brincar de tentar lembrar do presente.

Céu, Araguanã, Habitat Natural.

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