Como repensar as imagens?

Gabrielle Guido
Coluna Lambfoto
Published in
4 min readFeb 27, 2021

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Fotografar é musculatura. Do corpo que se esgueira, que desce, que fica na ponta do pé. Da mão que aperta vários botões (às vezes um só) e principalmente, da mente. A cada imagem criada, seja a mais rápida, cotidiana ou a mais planejada e elaborada de todas, nós ativamos nossas bagagens imagéticas. Tudo que vimos, gostamos, desgostamos está ali.

Anos de colonização, do sertão pobre, da idosa sorrindo com olhos brilhantes para a câmera, da mulher sensual, das prostitutas seminuas em grande contraste e as crianças saltando do rio. Tenho certeza que a cada exemplo lido você lembrou de alguma foto. Nosso HD cerebral está recheado de imagens despejadas sobre nós, por isso falamos tanto da importância de termos referências.

A gente tem discutido ferozmente a necessidade de renovar os olhares, de criar novas referências — será que são novas mesmo? — de construir narrativas visuais e possibilidades de existências mais diversas, respeitosas, sem a dor e violência das colonizações.

Mas como nos desfazer de referências que estão incrustadas em nós? Não há resposta pronta, nem simples. O que temos são dúvidas para compartilharmos e assim a gente pode pensar juntas/os/es para onde ir, para que lado empurrar e descobrir qual muro pode virar ponte.

A gente pode começar com a palavra “novo”. Tem uma série de produtoras/os/es de imagens não reconhecidas, ou reconhecidas tardiamente que já causavam tensões, que fugiam das narrativas mais hegemônicas e apresentavam contrapontos sobre diversos corpos e realidades. Enquanto digitava este texto lembrei de três que encontrei em longas pesquisas, mas que não ouvi em sala de aula: Bauer Sá, Arthur Jafa e Ming Smith.

Talvez um primeiro passo seja a pesquisa. Encontrar arquivos que nos foram negados, entender as ausências de imagens e buscar a história dos nossos.

Olhos de Xangô (Xangô’s Eyes), 2007–2009 — Bauer Sá nascido em Salvador (1950)
Olhos de Xangô (Xangô’s Eyes), 2007–2009 — Bauer Sá nascido em Salvador (1950)
America Seen Through Stars and Stripes, New York City, NY’ (1976) — Ming Smith (Detroit, Michigan, EUA) primeira fotógrafa afro-americana a ter um trabalho adquirido pelo MOMA
Single Pool Player, Pittsburg, PA, (August Wilson Series)’ (1991) © Jenkins Johnson Gallery

Mas a questão não é só produzir, é também olhar para as imagens criadas sobre nós que foram exotizadas, limitantes e que forjaram histórias únicas. O sertão só é realmente feito pela escassez? Da terra rachada e a família grande em frente a uma casa de pau a pique?

Por que encontramos fotos, pinturas e representações da parte branca da família até antes dos tataravós, mas quando se tem melanina na pele mal achamos até os bisavós?

O que fazer com as imagens colonizadas? Como olhar criticamente para o que foi produzido? O que fazer com este material? Como subvertê-lo? Podemos remontá-lo?

Frida Orupabo, artista norueguesa com descendência nigeriana, trabalha com arquivos de 1850 e como bonecas ela recria corpos, poses e cenas, provocando um mistério, dor e uma sedução que causam tensões poderosas. Ao recortar e associar outros pedaços de corpos, Orupabo insinua que aquela imagem é dinâmica, pode ser alterada e remontada da forma que for interessante para nós. Ela se apropria das imagens para criar uma outra narrativa e protagonismo ao tratar de questões raciais, relações familiares, gênero, sexualidade e violência. Uma pista, para que não fiquem só dúvidas.

Frida Orupabo, colagem — https://fridaorupabo.com/
Frida Orupabo, colagem — https://fridaorupabo.com/

Para deixar o jogo mais complexo: a gente batalha o tempo todo contra as “imagens roubadas”. — se você chegou aqui assumi que você concorda que não fotografamos a realidade e que #nofilter não faz sentido — Todos os dias perguntamos: quem tirou aquela foto? como? devolveu para quem foi fotografada/o/e? Pediu autorização? Atribuir a importância não está só no clique, mas na experiência e conexão estabelecida ali, no respeito em quem cria a foto conosco.

Caso o jogo aqui vire trocar referências, fique à vontade para mandar várias, principalmente as que ainda não foram citadas: as não heterossexuais, as queers, mais mulheres, mais homens pretos, as não ocidentais, as populares, as que dizem não ser arte. A diversidade é tanta que todo e qualquer discurso será um recorte, é bom lembrar disso.

É bom também lembrar que temos o privilégio de estar em 2021. Por mais que pareça terrível (sabemos que está) tem grupos e movimentos que abriram as janelas, portas e as vezes frestas para nós. Nos arquivos não encontrados, nas histórias contadas pelos mais velhos tem imagens e faz parte do nosso trabalho-desafio encontrá-las e decifrá-las. Elas nos dão exemplos de como diversificar as narrativas e disputar o poder.

Como os caracteres já se tornaram incontáveis, chego ao fim deste primeiro papo. A filosofia ocidental adora fazer perguntas e uma das boas coisas que aprendi com ela é que as perguntas certas são catalisadoras de profundos pensamentos e mudanças em diferentes níveis. Espero que uma das interrogações colocadas aqui te abra um caminho.

Até breve.

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