O que nos resta?

Gabrielle Guido
Coluna Lambfoto
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2 min readAug 5, 2021

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13 de junho

Eu tinha planejado tudo diferente. O texto “Como repensar as imagens”, seria o primeiro de uma série cheia de provocações, às vezes doses de ironia e curtas análises. Mas, estamos em uma pandemia, raros são os planos que duram mais que um dia, as vezes não se sustentam nem sequer por poucas horas.

Como todo ser nascido no Brasil, recebi péssimas notícias. Foi sobre uma prima que chamo de tia. Soube da internação e só consegui lembrar de uma foto que tirei dela: em pé na voadeira que ela mesma pilotava em pleno rio Araguaia, as roupas coloridas se misturam com a paisagem, ela usava um chapéu que tapa um pouco seus olhos, mas que evidenciava o batonzão vermelho.

Fiquei irritada. Na imanência da morte lembrei de uma foto de três anos atrás. Minha mente vagou entre histórias, cheiros e texturas, mas todas pareciam frames soltos que às vezes se juntavam e formavam uma espécie de stop motion que circulava na minha cabeça.

14 de junho, 23h

Ela morreu.

Continuo lembrando da foto.

16 de junho

Lembro da primeira vez que lidei com a morte de alguém que tinha fotografado. Fui à casa da família de uma amiga e fiquei encantada com os relógios antigos espalhados pelas paredes. O colecionador, sr. Paulo, já estava acamado, mas levantou animado para contar histórias sobre suas preciosidades. Meses depois ele faleceu. Eu olhava para a foto confusa e responsável por parte da memória que a família teria.

Agora, eu sou família e fotógrafa. Três anos depois de uma viagem de carro, de tia ter tirado a carteira de pilota de pequenas embarcações “para a gente não ser presa pela marinha e seu pai brigar comigo” eu só sei olhar para essa foto. O privilégio da distância me deu a oportunidade de congelar o sorriso em detrimento do sofrimento, da falta de despedida, de vê-la acamada, cheia de tubos, talvez de bruços.

Entrei para a estatística daqueles que colecionam dores e lembranças. Fiquei feliz de pelo menos ter feito essa foto.

Tia Neusinete, Araguanã — Tocantins, 2018

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